Consulta Psicoespiritual (Taroterápico)

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

a moeda nº1 (sobre perdas, desvios, coleções e perdição)



Tio Patinhas ganhou uma moeda, primeiro fruto do seu trabalho, quando ainda era criança. Guardou-a. Estamos autorizados a pensar que sentiu uma felicidade indescritível e que tirou a moedinha de circulação como forma de conservar a memória daquela sensação. O tostão como ponto inicial do milhão ― e tudo poderia ser apenas uma parábola edificante acerca da acumulação capitalista.

Acontece que o óbolo do jovem Patinhas ganhou também uma natureza segunda, mágica, supersticiosa mesmo, transcendendo sua função de troca e adquirindo valor cultual. O objeto corriqueiro sofreu, assim, um extravio do seu lugar original, uma espécie de envelopamento o tomou: o invólucro do fetiche, o desvio-desvão da palavra.

Patinhas também se transforma, deixa de ser jornaleiro, vira jornalista e, depois, dono do jornal A Patada. À primeira moeda seguiram-se muitas outras; Patinhas ficou rico, milionário, mais que isso: quaquilionário. Mas isto não o livra de se tornar inseguro ante a possibilidade (bem real) de perdê-la para competidores invejosos.

Tio Patinhas é como o Fausto da 2ª parte do poema de Goethe: quanto mais se expande e desenvolve seu império, mais infeliz se torna; paradoxalmente, na medida em que acumula, perde. Ora, se Patinhas/Fausto ganha mais e mais daquilo que os outros valorizam ― dinheiro, poder, fama ― em que nível se dá a perda? Sentimos aqui a força de uma vontade titânica querendo ir além do Augenblicke, o piscar de olhos que é uma vida humana; capturar o instante que passa.

Assim também o Cidadão Kane de Orson Welles, pois Patinhas/ Fausto também é Charles Foster Kane ― como todos nós, aliás ―, já que todo o sortilégio de seu gênio, toda a operosidade e esforço que empregam, não são suficientes para trazer de volta o que o tempo levou. E é na busca do trenó-fetiche, que perdeu junto com a infância, que o atormentado Kane se lança; também ele constrói um império midiático e se entrega com fúria ao colecionismo: compra empresas, objetos de arte (estátuas principalmente), pessoas...

Porém, Kane/Fausto/Patinhas acaba(m) descobrindo seu limite: Kane não pode comprar o talento que a sua amada não tem e Fausto não pode ser imortal. E Patinhas? Tio Patinhas, que junta moedas em sua caixa-forte como Casanova contabiliza amantes, não pode ter todo o dinheiro do mundo, pelo simples motivo que este, se não circular, não existe.

O triunfo-fracasso de Patinhas não deixa de suscitar a emulação (e a inveja, portanto), tanto nas hostes do Bem como nas do Mal. O sobrinho-looser Donald tenta a carreira de jornalista, mas não ascende como o tio; o sobrinho-sortudo Gastão tem sorte, mas não chega a entesourar fortuna como o miliardário. Do lado do Mal, os Irmãos Metralhas não cessam de tentar arrombar a residência-cofre e a Maga Patalógica de cobiçar seu amuleto de poder. Cada um deles, à sua maneira, falha.

O que aconteceria se em Patópolis uma inédita crise financeira drenasse todo o dinheiro para a casa-caixa do ricaço avarento? Seria de se supor que, inteirada a série que começa na moeda nº 1 e afastada a ameaça representada pela ciumeira de dentro e de fora da família pato (lembremos que os metralhas são cachorros), Patinhas finalmente encontrasse a paz.

Talvez não. Seja em Patópolis, Manhattan ou Garanhuns, o desejo, perdido o paraíso da completude narcísica, desliza continuamente de objeto a objeto, da mesma forma que, na linguagem, o sentido se desloca numa cadeia de significantes cujo início está interdito e cujo fim não se avista. Nem todas as moedas do mundo restituiriam ao tio Patinhas a magia do instante inaugural.


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