
Uma obra de arte, como um sonho, nunca pode ser interpretada por inteiro. Ali onde uma representação se forma, ela nos escapa em parte. A arte do sonho trança as fibras do que se apresenta e do que se representa, retorta onde o inconsciente se entranha no corpo, o sonho funciona como sistema de trocas entre a noite e o dia, a biologia e a cultura, atividade e repouso, apropriação e sujeição, a vida e a morte, o sono e a vigília. O espaço onírico oscila entre estados do Eu e do não-Eu, à maneira de um conjunto de matriochkas que se incluíssem e excluíssem reciprocamente, como se a subjetividade, expandindo-se ao infinito, pudesse colapsar o fora da sua (oni) presença, permitindo ao objeto existir na interioridade e na distância, ao espaço conter seu negativo e ao tempo um fechamento sobre si. A tamanha violência o aparelho psíquico reage neoformando, remodelando o que era economia instintiva em pulsional: o delírio é este universo concentracionário em que todos e cada um são, foram, poderão ser... Deus.
O sonho é elaborado dentro, mas tem de se fechar fora, ele só conserva sua substância com o fora. O corpo do deus Osíris flutua despedaçado sobre o Nilo, Ísis e Néftis sopram vida aos 42 pedaços, menos um, o pênis, comido por um peixe: a morte como castração final da vida, mas também como sua condição. Na dimensão mítica, só ao preço de se tornar virtual é que o falo poderá sustentar a potência fecundante, nela, o externo é convocado a completar o interno, a série se completa pela ausência, etc., etc.. Na obscuridade do sonho nascem os híbridos sensação-pensamento, organismos feitos de memória-percepção-signo cujo umbigo (boca, olho, vagina, ânus) ameaça tudo devorar. Sabemos quando estamos acordados, o que nunca temos certeza é se estamos sonhando. Até onde podemos saber acerca do enigma do sonho?
“Mesmo nos sonhos mais bem interpretados, é freqüente ter de deixar um lugar nas sombras, porque, na interpretação, percebe-se que ali há um emaranhado de pensamentos do sonho que não se deixa desenredar, mas que tampouco dá outra contribuição ao conteúdo do sonho. É o umbigo do sonho, o lugar onde ele repousa no desconhecido. Os pensamentos do sonho a que se tem acesso pela interpretação têm de permanecer, de forma geral, sem qualquer fechamento e partir em todas as direções na embaralhada rede de nosso mundo de pensamentos. De um lugar mais denso dessa rede surge o desejo do sonho como o cogumelo de seu micélio.” (Sigmund Freud).
Já neste primeiro umbigo, psicossomático, somos confrontados pelo impensável universal, material submetido ao recalque primordial, inacessível ao pensamento e à linguagem; no umbigo interpsíquico também o sentido deriva de uma formação arcaica nodal irrepresentável, nesta outra matriz onírica o campo é compartilhado, espaço onde circula um pensamento do sonho comum a vários sonhadores. Mas sabemos que os sonhos podem ultrapassar ainda este nível da telepatia grupal, do sonho coletivo: num terceiro bulbo do sonho se articulam o rito, o mito e a profecia.
Os indígenas da América inventaram diversos filtros de sonhos, para deixar passar os sonhos e barrar os pesadelos, manter os mortos longe dos vivos que dormem e afastar os espíritos nocivos dos lugares de purificação e cura; p.ex., os xamãs dos Algonquinos (Canadá) instalam teias de couro amarradas em ramos curvos, com penas colocadas a intervalos regulares em torno de nós ou contas. Dos umbigos do sonho emergem os meta-níveis: assim é o mito que vem interpretar o sonho, mito que é signo de uma outra língua, um signo de signo. Os índios já sabiam que são estes nós mais densos que revelam os sentidos ocultos da vida humana; para eles, os sonhos também são filtros de mitos.