Consulta Psicoespiritual (Taroterápico)

sábado, 14 de março de 2009

quase-ensaio sobre Khôra, o informe

ilustração de Bruno Urbanavicius

Perde-se na noite dos tempos a origem da noção de que participamos de dois mundos, um, material e captado pelos sentidos, outro, sutil e apenas acessível ao espírito. Platão entendia que no primeiro deles vivem os seres visíveis e, portanto, sujeitos às vicissitudes do nascimento e da morte, chamados por ele de Cópias (mimemas); estes, não passam de sombras dos seres ideais e imutáveis que vivem no mundo eterno dos Modelos (paradeigmatos).

O mesmo filósofo, porém, nos advertiu da existência de um terceiro gênero (triton genos) de seres, vivendo num mundo situado entre o espiritual superior e o reino de corrupção da matéria, ou entre o que é imediatamente percebido pelos sentidos e o que pede a mediação do inteligível ― uma realidade entre realidades, mas que não é estranha a nenhuma das outras.

A Khôra pode ser entendida como um lugar (topos), uma matriz, um receptáculo de marcas evanescentes ― diria que é um não-lugar que dá lugar e “coisidade” aos outros lugares e coisas. Não se pode compará-la a um substrato, um campo, tampouco a um espaço: Khôra é onde se assentam sítios e situações, podemos supô-la sem que seja representável (muito embora seja condição de toda representação). Ela não existe, mas é.

Estas considerações trazem associações com a comunicação, na qual, até mesmo em meio às metáforas inertes das falas ordinárias, intervém a autonomia arbitrária do significante. Como (re)produzir uma tal superfície virgem de recepção e ressonância, onde localizar este terceiro que espreita o discurso na relação incerta entre fala e linguagem? A tentação aqui é tornar homólogos o suporte pictográfico da representação e a primeiridade originária do informe, cuja liberdade divina não conhece limites.

O informe (amorphon) não guarda nada do que recebe e, por isso, tem de ser constantemente reinstaurado. Sendo o lugar dos lugares, Khôra se manifesta como “o que vem ao falar”, vale dizer, como região em que se inscrevem, ou ainda, o aspecto que tomam as coisas quando são faladas num dado local e momento. É nas sensações confusas que trazemos de quando a memória não alcança, que a linguagem reencontra a fonte e a força, sua figura e seu nome.


Espécie invisível, porta-traços destituído de propriedades, não atingimos Khôra mediados pela razão (logos), nem pela via direta da experiência estética, a alternativa mito-poética; é preciso um tipo de raciocínio híbrido (logismoi nothoi), um pensamento que tanto carece de lucidez, quanto se abre à profecia. Tamanha negatividade anacrônica ela comporta que mal lhe podemos dar crédito: seu discurso inaudível, as figuras (schemata) que engendra, se anunciam/enunciam como um sonho.