Consulta Psicoespiritual (Taroterápico)

domingo, 26 de dezembro de 2010

Conto de Natal

Todo mundo vê os tombos que levo, e todo mundo se apressa em apontar as cachaças que tomo. Uma terrivelmente simplificadora confusão entre meios e fins; a bebida, ao menos no meu caso, sempre foi um meio tolerado de apressar o fim ― um instrumento do inevitável entre tantos outros disponíveis, com um quê de indulgência romântica que convém ao estilo de vida que adotei. Para você, que está dentro da minha cabeça neste momento, não é difícil constatar que abomino a dor física e que receio mais ainda a vergonha de falhar no intento. Não há engano quanto a isto, faço meu cálculo de conseqüências: não quero legar às minhas filhas o peso de um suicida, embora me agradasse deixar esse estorvo à mãe delas. O veredicto social busca culpados para a autotanásia, no alcoolismo basta um.

De modo que fiquei restrito, por tibieza e hábito, a me aboletar em mesas e balcões de bar e esperar. Beber é um requinte da milenar arte da espera; já fumar, usar drogas, destruir carrões e motos, me dão a impressão de pressa, de uma certa displicência, algo como acelerar os ponteiros acrescentando peso aos mecanismos do carrilhão no relógio da vida. E se há uma coisa que detesto é a falta de critério dos tempos que correm, as pessoas saem a esmo imitando qualquer tendência para não ter que criar nada de intimamente seu. Nem mesmo a despedida. Comecei a beber de forma, digamos, mais competitiva, depois que a Yolanda se foi, deixando-me com as meninas; no ano em que a mais nova se formou, perdi meu último emprego registrado em carteira.

Não sei o que há comigo; por que continuo se já ultrapassei o préstimo?, o que é que ainda tenho que ver ou viver?. Já passei faz muito dos sessenta (meu pai, um avô e uma avó morreram do coração antes dos cinqüenta), parei com todos os remédios, estou pré-diabético, hipertenso e uns bons trinta quilos acima do peso, todas as madrugadas enxugo hectolitros de destilados, fermentados, perfume, desinfetante, qualquer coisa que contenha álcool... e nada me acontece. Acordo todos os dias inchado, sem poder fechar os dedos da mão sobre as palmas, meu nariz é um obsceno morango recortado por veias escuras no rosto semi escondido pela barba branca; às dez em ponto, ainda de fogo, chupando a primeira bala de menta do dia, chego no promocenter onde estou defendendo uma graninha de fim de ano.

Até às sete fico lá, vestido com um roupão acetinado, botas e cinto de fivela, além do gorrinho vermelho de bolinha, com uma sineta na mão anunciando as ofertas imbatíveis do mini-shopping de bugigangas chinesas. Neste calor de fritar calango no meio-fio, não sei o que é pior: a canícula, as crianças me puxando a barba (“é de verdade, mãe!”) ou ter que passar a seco oito horas e meia, descontada a meia horinha do almoço, quando engulo uma esfiha, um torresmo ― e um martini com duas pedras de gelo, que ninguém é de ferro. Moro de favor nos fundos de um estacionamento próximo, o que me introduziu na seleta casta de habitantes do centro da cidade-dormitório. A cidade faz parte da Grande São Paulo; não é tão ruim quanto parece, os políticos daqui praticam o saudável esporte de se fuzilarem uns aos outros, o que vem estimulando a imprensa e o setor de serviços locais.

O centro comercial e administrativo é pequeno, mas o município é amplo; a maioria vive em subúrbios meio distantes, descampados, com ruas de terra batida servidas por excelente malha de córregos que também faz as vezes de esgoto. Mas não posso reclamar, vou a pé para a firma que fica na Avenida Brasil com a Araújo de Castro; o duro é que, como lá não tem vestiário masculino, tenho de já ir vestido de Papai Noel, e tome-lhe gozação no caminho. Nos estandes predominam as vendedoras, umas meninas enfiadas em calças jeans dois números menores do que o recheio, que passam a maior parte do dia coladas no celular falando com Deus e o mundo. Tomei gosto por conversar com a Jucilaine, uma dessas coitadas, que ainda por cima está grávida; a velha história: dezoito anos, segunda barriga, segundo pai que desaparece, a avó cria o primeiro brasilino, a mãe trabalha em São Paulo em casa de família.

“Você tem pai?”

“Nem o Noel.”

“E o do... da criança, quem é?”

“Um motoboy do Pizza Express, chama Gabriel.”

Fim de expediente, numa sede da quenga, só pensava na hora de sair dali e já tomar a primeira breja da noite num pé-sujo da vizinhança, só pra lubrificar dando uma banana para quem achasse graça da roupa e para a tal Ceia de Natal. Não sou de ficar emotivo por datas, não antes de encharcar a alma de manguaça, não antes de relembrar que a Yolanda saiu de casa para viver com outra mulher, que as minhas filhas são gerentes de multinacional e já desistiram de me internar em clínicas de reabilitação. Só dei para a mais velha o telefone do estacionamento. Começou então uma daquelas chuvaradas que foi virando enchente em pouco tempo, trânsito parado, os ônibus e peruas passando apinhados de gente sem pegar ninguém no ponto. De repente, a magia das compras havia cessado e as pessoas foram para a porta assistir à fúria das águas que desciam em torrente na direção da parte mais baixa da avenida.

Jucilaine ia dormir na casa de uma amiga, já que no bairro dela o córrego transbordara e nada nem ninguém passaria por ali naquela noite. A mãe ligou dizendo que também não conseguia voltar de São Paulo; ligou para tranqüilizar a avó, que guardasse o peru, fariam a comilança e a entrega de presentes no dia seguinte, paciência. Mas a amiga também estava com problemas na sua quebrada, a Defesa Civil tinha acabado de mandar desocupar toda a rua por risco de desabamento. Ofereci-me para lhe dar um pouso naquela noite de caos; do estacionamento poderia ligar para saber como estavam as coisas com a avó ― ela tinha ficado sem créditos no celular. Não deve ter sido um belo espetáculo, uma dupla bizarra espremida sob o guarda-chuva virado do avesso pelo vento, meio a reboque da enxurrada e com rajadas de chuva batendo de tudo quanto é lado. Menos bonito ainda foi quando fizemos uma parada técnica num boteco, onde abri os trabalhos mandando duas Steinhäger com limão pra baixo; ela recusou o ovo colorido que o garçom lhe trouxe no pires.

Quase que ela poderia ser a neta que não tinha, mas, enquanto caminhávamos aos tropicões pelas ruas alagadas, pensei que tudo aquilo poderia estar ligado ao motivo de eu continuar, misteriosamente, vivo. Fiquei constrangido ao sentir o meu barrigão encostado no dela e, sem entender o que uma coisa teria a ver com a outra, não conseguia tirar a pergunta da cabeça: “qual lição ainda tenho que aprender?” Papo mais besta, esse; acomodei-a no muquinfo em que vivia, presenteando-lhe o colchão e me estiquei na poltrona. O banheiro ficava num puxadinho do lado de fora da edícula; você que neste momento tem acesso a tudo que penso, sabe que velei toda a noite porque faltavam ainda muitos graus GL para me derrubar nos braços de Morfeu, e também que ansiava vê-la levantar-se, ir ao toalete lá fora e voltar toda molhada, se aninhar ao meu lado.

Dar umazinha hoje até que não ia mal, já faz tempo a última. Quantos Natais? Mas o que ninguém poderia suspeitar é que ali, semi-adormecido na poltrona, mamando os restos de uma garrafa de Pitú esquecida no almoxarifado, eu lembrei. Veio tudo, o dia em que pedi a Yolanda que abortasse o que seria nosso primeiro filho, recordei o terror por estar desempregado, o olhar dela; mesmo que duas filhas saudáveis tenham vindo depois, nunca mais dormimos na mesma cama. Será que era isso, finalmente o destino estaria me dando uma mensagem cristalina, eu ainda precisaria conhecer o filho da Jucilaine? Certo, uma criança está vindo; pode não ser muito, mas sempre é alguma coisa.

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